ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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O PADRE QUE ERA UM BOM PROFESSOR (a propósito de O Respigador)

por João Jales

Jantar de professores, Natal de 1964







Como disse no meu comentário, o texto do João Serra é magnífico, conseguindo retratar perfeitamente alguém tão complexo como o Padre Renato a partir de um episódio aparentemente tão simples e pueril. E fazendo com que esta avalanche de recordações se tenha abatido sobre mim ao lê-lo.

Tive o Padre Renato como professor de Canto Coral, Português e Desenho. Foi sempre um professor empenhado e preocupado com o resultado da sua acção pedagógica, chegando a fazer verdadeiras aulas de recuperação, ou reforço, destinadas aos alunos interessados, ao Sábado à tarde, no Colégio. Perseguia os seus alunos de Latim do 7º Ano para lhes dar explicações em casa e nos Cafés, mas isso espero que sejam eles a contar.

Era pessoalmente uma pessoa estranha e imprevisível, como o João tão bem descreve, capaz de mudar subitamente de uma beatitude quase infantil à mais incontrolável das fúrias. Lembro-me de aulas interrompidas a meio, com alunos a sair da sala pelo ar (quando foi a minha vez de voar entre a 3ª fila e o corredor, a porta estava felizmente aberta), livros de ponto rasgados ao meio, os seus óculos e canetas violentamente esmagados em cima da secretária. Mas quando estes objectos eram repostos por alguns encarregados de educação que, conhecendo os filhos, sabiam que a culpa não era só do Sr. Padre, ele ia à Tália ou ao oculista trocá-los por similares mais baratos e usava o diferencial com os pobres e a Igreja de Tornada. Tentou fazer isso com um sobretudo comprado na Góia por algumas mães de alunos, numa colecta organizada na Zaira (não, não era só um ninho de víboras). Foi avisado o Adelino e, quando o bom do Padre tentou trocá-lo por algo mais barato, foi informado que o sobretudo não fora lá comprado, tinha seguramente vindo de Inglaterra e não podia ser devolvido. Usou-o duas ou três vezes, convencido pelo Padre Xico que seria uma afronta não o fazer, mas acabou, no ano seguinte, a agasalhar um pobre seu protegido.

Os seus dotes de hipnotizador eram inegáveis, várias vezes o vi exercitá-los no recreio do ERO. Vi um colega beijar uma coluna convencido que era a sua mãe, outro de gatas julgando-se um cão e outro ainda, convencido que era já de noite e estava atrasadíssimo no regresso a casa, ficar indescritível e genuinamente aflito. Um episódio em que um garoto, julgo que em Tornada, durante uma sessão destas atravessou inadvertidamente a estrada, arriscando-se a ser atropelado, levou o hipnotizador a reduzir muito a sua actividade. Foi ele próprio que me relatou este incidente.

No Canto Coral eu e o Miguel Bento Monteiro tivemos o mesmo destino do João Serra, absolutamente proibidos de emitir um só som enquanto a turma cantava. Tinham lugar estas aulas no anfiteatro, ao fundo do corredor do 1º andar. Chegámos ambos a tentar cantar o nosso melhor, muito baixinho: mal começávamos, uma mão descontrolada deixava de marcar o compasso e batia furiosamente no tampo de pedra! O ouvido do Sr. Padre Renato não suportava as nossas melhores tentativas, por mais que nos esforçássemos e lá vínhamos nós passear até ao recreio, normalmente enfiados pelo Sr. Ulisses na Sala de Estudo, onde medíamos forças com a D. Dora para ver quem perdia a paciência primeiro. Ela era um adversário duro, não ganhámos sempre.

Soube depois que as nossas duas notas de Canto Coral eram depois “negociadas” nas reuniões de turma no fim do período, na base da média das restantes notas de cada um de nós. A obtenção de 14 ou 15 valores numa disciplina onde nada fazíamos era motivo de indignação entre alguns colegas que cantavam afanosamente todas as aulas para obterem notas iguais ou mais baixas…

Nas aulas de Português do 4º Ano fomos sujeitos a um curso intensivo de Latim, mas por culpa nossa, claro. Bastava perguntar “oh Sr. Padre porque é que se escreve esta palavra assim?” ou “porque é que este verbo se conjuga assado?” para garantir uma aula sem problemas até ao toque final. O único que se podia queixar era o responsável pela limpeza do quadro, que tinha depois que apagar declinações e evoluções fonéticas e semânticas sem fim. Eu, o Flores, o Zequinha e o Vítor Gil ensaiávamos pequenos sketches com anedotas que representávamos nessas aulas, numa iniciativa de dinamização da sua hora lectiva que contrastava com a mortal agonia das aulas de História do Padre Albino, por exemplo.

Finalmente as aulas de Desenho à Vista, no 5º Ano, onde o Sr. Padre conseguiu que eu obtivesse dezasseis no exame final! Habituado toda a vida a ver gabadas as minhas mesas e cadeiras quando tentava representar vacas e cães, a minha nota foi um resultado notável …. do professor! Quem já viu qualquer desenho meu sabe bem o milagre que aquela nota significou. Foi aqui que aproveitei as suas aulas de Sábado à tarde, na sala contígua à sala dos professores, aprendendo a desenhar, e depois a pintar e sombrear com lápis de cera. Claro que alguns roubavam os seus cigarros, Português Suave sem filtro, e fumavam à janela, outros fugiam a meio para ir jogar para a Mata, aproveitando uma tarde em que a família não colocava grandes problemas de horários, visto teoricamente estarmos no Colégio (difícil explicar por vezes como arruinávamos umas calças ou uns sapatos a desenhar, mas a imaginação juvenil e a paciência maternal não têm limites…). E o Padre Renato, passadas as momentâneas fúrias, tudo perdoava.

Um homem bom, dos melhores que conheci, o Padre Renato.

J J
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COMENTÁRIOS
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Ana Carvalho disse.
João mais uma vez provaste que és um excelente escritor! vá, escreve lá um livro! Ainda me lembro das aulas de canto coral do Padre Renato, tambem eu tinha de ficar calada, mas era dificil conter o riso, de vez em quando lá ia para a rua. Lembro-me perfeitamente das anedotas que se contavam na aula de português contigo, com o Flores, Miguel Bento Monteiro .. o Padre Renato adoravava-vos, ainda me lembro de um dia em que o puseram no meio da sala com um livro na mão com três bocados de giz em cima e vocês andavam à volta dele e riscaram-no todo nas costas...o que ele ria. Grande homem que era o padre Renato tenho boas recordações dele lembro-me dele com muito carinho e saudade.PP
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Ana Nascimento disse:
(....) Tu escreves muito bem, Joãozinho… estás sempre a surpreender-me … agarras-nos à leitura…. como é que não tens um livro ???? MISTÉRIO !!!!!! pode ser que esteja na forja !!!!! espero bem que sim….
Escrevi umas linhas, sem qualquer pretensão senão a de recordar um homem que de facto se despojava de tudo quanto era material e dava tanto de si para que os seus alunos brilhassem e crescessem com valores de vida.
NOTA- As linhas que a Ana escreveu serão também um artigo aqui no Blog, logo que possível. JJ
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Isabel Esse disse:
Mas será possível que naquele colégio fossem todos duros de ouvido???Estou a brincar,o sr padre é que era muito exigente e eu ainda me lembro naquela altura de ser motivo de risota o João tentar cantar qualquer música!!!Era uma desgraça incompreensivel.Pelo contrário a escrever é fantástico,os textos e memórias fazem-me reviver aqueles anos como se fosse ontem.....e o sr padre Renato merece esta qualidade
Parabéns...e continua!!!
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Isabel Knaff disse:
Gostei muito de ler o teu texto! Que memória que tu tens... trouxe-me novamente recordações...imagina que "vi " logo o Padre Renato a fumar o seu "português suave" e o jeito que ele dava aos lábios depois de expirar o fumo, os dedos queimados de nicotina ...a voz profunda...até o cheiro do cigarro parece que ficou no ar!
E já agora que a pergunta foi feita, aproveito para a 'sublimar'... entre tantas hipóteses de "cantores", não houve ninguem que "vingasse"???Um que fosse já satisfazia a minha curiosidade...
Desconhecia que o sr. Ulisses é que vos dirigia à sala de estudo...é ...ele sempre foi bom a executar acções do género, mas credo,tambem não tinha que exagerar ...entregar-vos à D.Dora!!!Esta série dos professores é tão interessante... vai buscar um bocadinho do passado que vivemos em comum!
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Júlia Ribeiro disse:
Eu bem te digo que devias escrever um livro,porque não?
Lê-se sem qq esforço,prende a atenção,vamos até ao fim! Olha que terias sucesso !
Está (não consigo exprimir por palavras)uma maravilha,talvez,mas não gosto desta palavra...olha,IMAGINA!Bjs

Júlia

Jorge disse:
esta série promete, se toda a gente desatar a escrever assim sobre todos os professores. o Padre Renato a respigar e hipnotizar, a filha da Isabel(é mesmo Renata!?) as aulas dele e as suas fúrias, como tu descreves, tudo, como a ti,me trouxe memórias.abraço
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Luís disse:
Este foi o homem mais extraordinário que conheci no colégio,partilho convosco todos os elogios.
A qualidade dos posts continua alta,e o retrato da São é muito bom.O texto do João Serra fala do bricalhão,o da Isabel do homem com coração de ouro e o teu do professor querido de todos.
será possível escreveres tão bem sobre outros professores?Ou até nisso o Padre Renato teve culpa,como no teu desenho do 5º Ano? Luis
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J. L. Reboleira Alexandre disse:
Seja neste, seja no blog da Escola, o Padre Renato está sempre presente. Nestes dois sítios já passaram todo o tipo de manifestações de apreço que todos nós temos, tivemos a seu respeito. Eu por exemplo já referi que adorava parar a bicicleta que me transportava para a Escola, no cimo da longa (na altura) subida dos moinhos do Chão da Parada, e ficar a admirar os seus trabalhos de aguarela enquanto ele pintava. O meu primo Louro, refere orgulhosamente ter sido por ele casado em Tornada, e guardar religiosamente umas telas que ele lhe deu na altura. Todos relembramos a dificuldade que tínhamos em fazer sair um qualquer som válido das nossas vozes. Será que no meio de todos aqueles potenciais cantores haveria afinal alguém que não desafinasse?
Mas por vezes a sua existência de pároco duma aldeia com jovens rebeldes (a juventude e adolescência ontem como hoje, são períodos dificeis para quem os vive)como era na altura o Chão da Parada deu-lhe razões mais que suficientes para se zangar. Uma noite de Inverno estava ele dando o terço (se a memória não falha à noite chamava-se terço e a missa era de dia em Tornada) lá na terra, e como de costume, a sua inseparável Vespa ficara encostada à parede da porta de entrada. O que tinha de acontecer, aconteceu. Quando a missa acabou, os pneus estavam furados e não sei como se processou o seu regresso a casa, no meio da escuridão de uma aldeia que nem electricidade tinha.
Na altura todos riram da desgraça do pároco. É que lá na aldeia nenhum rapaz assistia ao terço, nem esperavam à saída do mesmo, pois as garotas também não iam.
Até hoje nunca soube quem foram os autores da «gracinha». Ele não merecia, mas enfim, quantas partidas deste género teria sofrido ao longo da sua longa vida de padre de aldeia ?
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Inês disse...
omnia vincit amor, o amor vence tudo [dic. Porto Editora]
Belíssimo este amor vestido de palavras. Belíssimo, JJ
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4 comentários:

Isabel Esse disse...

Mas será possível que naquele colégio fossem todos duros de ouvido???Estou a brincar,o sr padre é que era muito exigente e eu ainda me lembro naquela altura de ser motivo de risota o João tentar cantar qualquer música!!!Era uma desgraça incompreensivel.Pelo contrário a escrever é fantástico,os textos e memórias fazem-me reviver aqueles anos como se fosse ontem.....e o sr padre Renato merece esta qualidade
Parabéns...e continua!!!

Anónimo disse...

Este foi o homem mais extraordinário que conheci no colégio,partilho convosco todos os elogios.
A qualidade dos posts continua alta,e o retrato da São é muito bom.O texto do João Serra fala do bricalhão,o da Isabel do homem com coração de ouro e o teu do professor querido de todos.
será possível escreveres tão bem sobre outros professores?Ou até nisso o Padre Renato teve culpa,como no teu desenho do 5º Ano? Luis

Anónimo disse...

Seja neste, seja no blog da Escola, o Padre Renato está sempre presente. Nestes dois sítios já passaram todo o tipo de manifestações de apreço que todos nós temos, tivemos a seu respeito. Eu por exemplo já referi que adorava parar a bicicleta que me transportava para a Escola, no cimo da longa (na altura) subida dos moinhos do Chão da Parada, e ficar a admirar os seus trabalhos de aguarela enquanto ele pintava. O meu primo Louro, refere orgulhosamente ter sido por ele casado em Tornada, e guardar religiosamente umas telas que ele lhe deu na altura. Todos relembramos a dificuldade que tínhamos em fazer sair um qualquer som válido das nossas vozes. Será que no meio de todos aqueles potenciais cantores haveria afinal alguém que não desafinasse ?

Mas por vezes a sua existência de pároco duma aldeia com jovens rebeldes (a juventude e adolescência ontem como hoje, são períodos dificeis para quem os vive)como era na altura o Chão da Parada deu-lhe razões mais que suficientes para se zangar. Uma noite de Inverno estava ele dando o terço (se a memória não falha à noite chamava-se terço e a missa era de dia em Tornada) lá na terra, e como de costume, a sua inseparável Vespa ficara encostada à parede da porta de entrada. O que tinha de acontecer, aconteceu. Quando a missa acabou, os pneus estavam furados e não sei como se processou o seu regresso a casa, no meio da escuridão de uma aldeia que nem electricidade tinha.

Na altura todos riram da desgraça do pároco. É que lá na aldeia nenhum rapaz assistia ao terço, nem esperavam à saída do mesmo, pois as garotas também não iam.

Até hoje nunca soube quem foram os autores da «gracinha». Ele não merecia, mas enfim, quantas partidas deste género teria sofrido ao longo da sua longa vida de padre de aldeia ?

Inês disse...

omnia vincit amor, o amor vence tudo [dic. Porto Editora]

Belíssimo este amor vestido de palavras. Belíssimo, JJ